Misandria pouca é bobagem
Quando um simples “boa noite” ergue muros invisíveis, cada tijolo revela privilégio herdado; mergulhe neste relato e descubra como transformar as mesmas pedras em pontes de empatia genuína e ação real
Eu tinha acabado de atravessar o saguão iluminado de um evento sobre inovação social quando avistei duas participantes que conhecia apenas de trocas virtuais. Sorri, ergui o queixo num “boa noite” polido, pronto para estender a conversa que vínhamos construindo on-line. Elas, no entanto, desviaram o rosto — sincronizadas como pássaros que pressentem perigo. Um segundo inteiro de espanto caberia numa eternidade, mas eu já estava acostumado ao tropeço: não era a primeira vez que meu simples “oi” batia num muro invisível.
Não confunda meu espanto com surpresa total. Sou homem, branco, heterossexual — trio de cartas marcadas que embarco comigo desde o berço. Sou, além disso, superdotado: meus sensores afetivos operam em volume alto, captando microtensões que muitas pessoas filtram sem notar. Quando alguém vira o rosto, sinto a porta se fechando antes mesmo de perceber que existe porta. O gesto das duas mulheres não trazia rancor explícito, apenas uma rejeição sutil, quase defensiva. Ainda assim, doeu como açoite de vento gelado em pele exposta.
Minha mente correu à frente: “Será que fiz algo errado? Ou será apenas o traço de cansaço delas com a figura masculina que, por padrão histórico, ocupa espaços demais?” Foi aí que escutei meu próprio privilégio pulsando feito batida de tambor. Não sou signatário desses privilégios, mas eles chegam com meu nome no cabeçalho do envelope, selados pela estrutura social em que vivo. Carrego um crédito automático de autoridade que nunca pedi, porém recebo. Trago também a herança simbólica de séculos em que vozes como a delas foram silenciadas por vozes como a minha. Nenhum adesivo de “aliado” colado no peito dissolve isso de imediato
.
Mesmo assim, não consigo deixar de sentir a fisgada quando encontro a face de uma possível misandria — esse eco que diz: “Não confio em você porque você é homem.” Para um defensor fervoroso da igualdade, a sensação é paradoxal: lutar por pontes e perceber que, às vezes, o outro lado não quer atravessar. É como oferecer um aperto de mão e receber de volta a recordação das mãos que já feriram.
Voltei para casa ruminando a tensão entre meu espanto e minha lucidez. Se as duas mulheres carregam medos — justificáveis, dados os números de violência e assédio — minha obrigação é respeitar esse espaço de recuo. Afinal, empatia exige mais do que declarar boas intenções; exige suportar o desconforto de não ser recebido e, ainda assim, não recuar na defesa dos direitos delas.
Eis meu dilema cotidiano: sou aliado, mas visto a farda do opressor simbólico. Sou crítico das estruturas, mas caminho dentro delas. Posso me esquivar das vantagens injustas ao máximo — redistribuir voz, ceder palco, escutar — porém não posso rasgar a certidão que a sociedade me entrega como “homem padrão”. Reconhecer isso não me absolve; apenas me mantém em estado de atenção.
Naquela noite, depois do breve encontro, enviei uma mensagem cordial às duas, sem cobrança, agradecendo pelo trabalho que realizam. Não obtive resposta — e tudo bem. Segui meu caminho lembrando que algumas pontes precisam mais tempo, que certos tijolos ainda estão sendo fabricados. Até lá, sigo na beira do rio, segurando minhas madeiras, tentando não bater mais forte do que o necessário, atento ao momento exato em que um aceno possa, enfim, ser devolvido.
P.S. Reconheço que “misandria” não é opressão estrutural e nunca pretendi comparar meu incômodo ao peso histórico da misoginia; ele é apenas um sintoma menor do mesmo patriarcado que privilegia homens e ameaça mulheres. Relato o espanto porque homens precisam enxergar-se nesse espelho, mas não faço dele manchete — prometo incluir mais vozes femininas para que minha sensação seja pano de fundo, não centro do palco.
Também sei que privilégio não depende de adesão: seus dividendos caem na minha conta todo dia. Meu compromisso é reinvesti-los — cedendo espaço, indicando mulheres, pagando honorários justos — e continuar construindo pontes sem esperar certificado de “bom moço”. Escuto críticas como bússola, não como pedido de absolvição; minha recompensa deve ser a mudança concreta, não o afago.