O QUE NOS IMPEDE DE NOS SALVARMOS A NÓS MESMOS?
Em pleno século XXI, por que ainda depositamos nossa esperança em líderes que se vendem como “salvadores da pátria”? Medo, um inimigo interno introjetado em nossa sociedade por gerações.
A ascensão de governos autocráticos em diversos países das Américas e da Europa tem se tornado um tema cada vez mais presente nos debates públicos e acadêmicos. Em um mundo supostamente globalizado, onde as fronteiras culturais e econômicas parecem menos rígidas, a volta do autoritarismo — seja em regimes declaradamente ditatoriais ou em democracias sutilmente manipuladas — sinaliza um paradoxo inquietante: por que, em pleno século XXI, ainda depositamos nossa esperança em líderes que se vendem como “salvadores da pátria”?
A resposta, em parte, reside no medo. O medo, quando bem trabalhado por narrativas políticas, transforma-se em uma força poderosa de manipulação. Governantes ou aspirantes a tal utilizam-se de ameaças reais ou fabricadas para justificar o endurecimento de leis, o controle da informação e a restrição de liberdades individuais.
A mensagem é simples e eficiente: “Precisamos de mais poder para protegê-los”. E, imersa em situações de insegurança — econômica, social ou psicológica —, a população acaba por aceitar, em maior ou menor grau, o cerceamento de suas liberdades em nome da “segurança” ou da “ordem”.
Autoritarismo em alta: diferentes modelos, o mesmo resultado
Nas Américas, vemos o retrocesso democrático em países que adotam modelos cada vez mais centralizados, com líderes que criam inimigos internos ou externos como forma de mobilizar seguidores. Na Europa, partidos nacionalistas e populistas ganham espaço, alimentados pela insatisfação com políticas supranacionais e pela crise migratória.
Embora distintos nos discursos e nos símbolos que empregam, esses movimentos convergem em um ponto essencial: o autoritarismo. Seja pela limitação da liberdade de expressão, do direito de protesto ou do pluralismo político, todos reforçam a ideia de que um “poder forte” seria a única maneira de enfrentar problemas complexos.
Essa crença de que somente uma figura de autoridade máxima tem a capacidade de “salvar o país” — cada vez mais personificada em líderes que se colocam como a voz única de um povo oprimido ou desesperado — surge do mesmo mecanismo psicológico: a sensação de impotência coletiva. Quando a população não se percebe capaz de resolver sozinha as crises e dificuldades do cotidiano, passa a buscar em alguém “de fora” a solução rápida e milagrosa.
A ilusão do salvador e o senso de impotência
A história mostra diversos exemplos de como grandes massas podem ser conduzidas ao autoritarismo na tentativa de encontrar uma saída para seus problemas. Crises econômicas, guerras e pandemias geram incertezas e medos. Em situações como essas, a população desiludida com as respostas tradicionais — ou simplesmente cansada das disputas políticas que parecem não levar a lugar algum — torna-se terreno fértil para líderes autocráticos que se apresentam como “pais protetores”, “mitos” ou “iluminados”.
Porém, esse tipo de solução carregada de promessas geralmente ignora um aspecto essencial: a participação ativa das pessoas na gestão da sociedade. O discurso da autossuficiência de um líder retira do cidadão a oportunidade de se perceber como protagonista. Esse líder, ao se colocar como salvador, infantiliza o povo, tratando-o como incapaz de gerir suas próprias demandas.
Há ainda outra face desse fenômeno: ao longo das últimas décadas, a ideia de comunidade local, de vizinhança solidária e de ações de autogestão foi sendo substituída pela expectativa de que “alguém lá em cima” saiba resolver tudo. Pouco a pouco, nos afastamos da responsabilidade coletiva e criamos uma cultura do “alguém tem que fazer por mim”, um reflexo de gerações que não foram estimuladas a resolver problemas em conjunto, seja em sua rua, no bairro ou no círculo social mais próximo.
Medo, manipulação e o papel da mídia
Outra peça-chave nesse processo é a forma como o medo é amplificado e utilizado como recurso de manipulação. Meios de comunicação, redes sociais e líderes de opinião podem — voluntariamente ou não — legitimar esse sentimento de insegurança constante. Em muitos casos, notícias sensacionalistas e algoritmos de redes sociais (que realçam manchetes negativas e polarizadas) reforçam a narrativa de que vivemos em estado permanente de ameaça.
Esse clima de pânico social, uma vez consolidado, abre espaço para o surgimento de medidas autoritárias com maior aceitação popular. É quando se torna mais fácil impor censura ou aprovar leis que limitem direitos, sempre com o argumento da “emergência” ou da “proteção coletiva”.
Mas, se o medo e a desesperança alimentam o autoritarismo, o que nos impede de inverter essa lógica?
Redescobrindo nossa capacidade de ação
Em primeiro lugar, é preciso entender que a participação coletiva ainda é um instrumento poderoso de mudança. Apesar de vivermos em sistemas políticos muitas vezes desalinhados com o bem-estar comum, a mobilização local e a formação de redes solidárias podem ser uma resposta efetiva. Quando pessoas se unem em torno de um objetivo concreto — seja para melhorar a segurança do bairro, para garantir alimentação a famílias vulneráveis ou para reivindicar políticas públicas justas —, surge uma nova consciência de força coletiva.
Em segundo lugar, a educação tem um papel fundamental. Mais do que transmitir conteúdos, escolas e universidades deveriam promover a formação de indivíduos que compreendam o valor do diálogo, da cooperação e da organização social. É preciso despertar nas gerações futuras o senso de que são capazes, sim, de resolver problemas e construir soluções em conjunto, sem depender de um líder centralizado ou de uma autoridade supostamente onipotente.
Por fim, é essencial mantermos ativa a vigilância sobre nosso próprio comportamento. Autoritarismos não surgem apenas de um “vilão” que impõe sua vontade pela força; surgem, muitas vezes, da disposição coletiva em abrir mão das liberdades em troca de promessas de estabilidade ou progresso. Reconhecer essa armadilha é o primeiro passo para evitar cair nela.
Vivemos tempos em que o medo e a sensação de insegurança são transformados em moedas políticas. Autoritarismos ganham terreno porque oferecem, em linguagem simples e emocional, um caminho aparente para “resolver tudo” — desde que estejamos dispostos a entregar parte de nossa autonomia. Contudo, a história também mostra que os maiores avanços em termos de direitos sociais, justiça e igualdade surgiram de movimentos de base, da união popular, do engajamento de pessoas comuns em causas coletivas.
Se há algo que, de fato, nos impede de “nos salvarmos a nós mesmos”, é a falsa crença de que somos incapazes de fazê-lo. Quando esse mito cai por terra e percebemos nossa força conjunta, a ideia de entregar nosso futuro nas mãos de um único líder perde grande parte do sentido.
Dessa forma, a resposta para a pergunta do título passa a ser: não há nada que realmente nos impeça, a não ser a ilusão de que não podemos. E essa ilusão, felizmente, pode ser desfeita por meio da educação, da organização social e da valorização da participação cidadã em todos os níveis.